Há dez anos o objeto de inspiração do artista visual pernambucano Lourival Cuquinha são os imigrantes que trabalham como camelôs em grandes centros urbanos brasileiros. O projeto Transição de Fase, que já soma mais de 150 obras, dá visibilidade àqueles que fogem da pobreza, da violência, de guerras civis e de políticas de massacre do ser humano, buscando nas ruas das metrópoles uma melhor oportunidade de vida. De amanhã a sábado (24 a 28 de setembro), cinco obras desta espécie de “museu da imigração” chegam ao Recife e serão expostas no Pátio de São Pedro e na Rua Imperatriz.
Em sua trajetória artística, Lourival Cuquinha combina estética inovadora e crítica social, usando suportes como fotografia, vídeo e instalação, conectando realidades brasileiras a contextos globais e trazendo visibilidade a narrativas marginalizadas. Sua arte tem projeção internacional, com exibições em importantes espaços culturais. Ele é reconhecido por desafiar convenções e promover reflexões profundas sobre questões contemporâneas.
Desde 2014, o projeto Transição de Fase já levou obras para galerias, centro culturais e museus brasileiros, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo; o Galpão Bela Maré e o Parque das Ruínas, no Rio de Janeiro; o complexo cultural da Funarte, em Belo Horizonte; e o Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande (MT). Transição de Fase também já foi vista na embaixada do Brasil em Londres (Inglaterra) e na Art Brussels em Bruxelas (Bélgica).
Para exibi-la no Recife, Lourival Cuquinha optou por um novo formato: uma instalação com cinco obras, entre elas a Transição de Fase // Eloy, criada em 2015 a partir do encontro entre o artista e o peruano Eloy no Bairro do Recife. As demais, ainda inéditas, são resultado da continuidade da pesquisa feita pelo artista pelas ruas do Recife no primeiro semestre deste ano. Dois imigrantes senegaleses, Momar Mbaye e Amâdou Touré, e duas venezuelanas, Noelis Quijada e Maria Warao, foram escolhidos para participar do projeto.
O trabalho do artista começa com uma conversa com imigrantes que vendem produtos na rua. Os que são selecionados para participar do projeto têm toda ou parte de suas mercadorias compradas. Pequenas entrevistas são gravadas em vídeo e de cada imigrante participante é feito um registro fotográfico composto por duas imagens: de frente e de costas, junto dos objetos que comercializava. Em comum acordo, o cachê por essas fotografias tem o mesmo valor do(s) objeto(s) adquirido(s). As fotos de cada imigrante são impressas em uma superfície cujo valor equivale ao custo da mercadoria somado ao cachê pago pelas fotos. Essas superfícies são feitas com cédulas de real costuradas, placas de cobre e madeira.
No Pátio de São Pedro e na Rua da Imperatriz, cinco obras serão expostas em uma estrutura pentagonal de cobre criada pelo artista. De pequenas caixinhas de som, todas visíveis, os áudios das entrevistas realizadas com os imigrantes contatados no Recife serão emitidos e se misturarão espacialmente.
Essa algaravia de histórias tomará conta do ambiente e, dependendo da proximidade que o visitante estiver de uma obra, escutará mais uma história do que outra. Esses áudios, assim como o conjunto das peças/obras, são em Transição de Fase objetos de memória que narram fragmentos, são testemunhos dos movimentos migratórios atualmente em curso no mundo.
Com incentivo do Sistema de Incentivo à Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife, Secretaria de Cultura, Prefeitura do Recife, a exibição de Transição de Fase \\ Recife contará com a presença de mediadores. O ambiente expositivo e todas as obras que compõem a instalação estarão audiodescritas, possibilitando a fruição do resultado a pessoas com deficiência visual.
IMIGRAÇÃO EM PERNAMBUCO
Pernambuco tem, hoje, a maior quantidade de imigrantes já registrada. De acordo com a Polícia Federal, em 2021, 9.856 estrangeiros estavam registrados no estado, um número subnotificado, pois muitos chegam e se estabelecem de forma irregular. A grande maioria dos imigrantes vive na capital, razão pela qual foi sancionada a Lei N° 18.798, em 20 de maio de 2021, instituindo as bases para a elaboração da Política Municipal de Promoção dos Direitos dos Migrantes e Refugiados.
No âmbito federal, a Lei de Migração (N° 13.445/2017) tem como diretrizes a inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas, a promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O texto ainda entende as migrações como um fenômeno da humanidade e proíbe distinções discricionárias entre brasileiros e estrangeiros.
Lourival Cuquinha cita: “Antes de mais nada: o que é trabalho? Há dois tipos de trabalho: o primeiro, alterar a posição de um corpo na ou próximo à superfície da Terra relativamente a outro corpo; o segundo, mandar outra pessoa fazê-lo”, como diz Bertrand Russel em “Elogio ao Ócio”. “O sujeito que emigra é um corpo movente por ele próprio; também o é quando trabalha ambulando pelo território estrangeiro que vai se tornando cada vez mais dele. Muitas vezes ele próprio é o corpo deslocado de sua origem por força de um trabalho planetário que a economia impõe. Ele ainda, supostamente dentro de sua vontade, desloca corpos para vender coisas em centros urbanos – onde se situa o dinheiro. É uma interseção entre sujeito que se desloca e aquele que é deslocado”.
Ainda segundo o artista, “cabe ouvir e entender suas dinâmicas coletivas e individuais. Cabe ouvir, pois em seus gestos, ao indicar o corte do mundo, imigrantes reivindicam territórios sem fronteiras: utopia das mais futuras”.
SOBRE OS ARTISTAS
Lourival Cuquinha é um artista multimídia pernambucano. Questionando o estatuto sobre o que é “obra de arte” para gerar uma reflexão sobre como os artistas atualmente se posicionam frente ao sistema da arte, suas obras se concretizam em objetos físicos, ações, vídeos, instalações e intervenções na paisagem urbana. Ganhou projeção internacional quando realizou ações durante feiras, como Frieze de Londres, ArtRio e Miami Basel, para leiloar obras de sua autoria confeccionadas com cédulas de dinheiro costuradas em forma de bandeira. É mestre em cinema pela University of Wales, Newport, Reino Unido.
Momar Mbaye é senegalês. Marley, como é chamado no Brasil, deixou seu país em busca de uma vida com mais oportunidade. Viajou do Senegal para a Espanha e de lá para o Equador. Na sequência, embarcou em um ônibus para o Acre e depois foi para São Paulo. Ficou por lá até um amigo falar sobre o Recife: uma cidade boa para o comércio e parecida com a África. Ele veio e ficou.
Noelis Quijada nasceu em Caracas, na Venezuela, e faz seis anos vive no Brasil. Depois de viajar de carro ao longo de um mês, ela e o marido chegaram a Porto Alegre/RS, onde viveram durante um ano. Em busca do calor, de um clima semelhante ao existente no Caribe, Noelis decidiu vir para o Recife. Artesã, ela comercializa os objetos criados com vidro, matéria-prima que domina.
Amâdou Touré mora no Brasil há 23 anos. Ele é senegalês da etnia fulane (pheul) e descendente de duas etnias provenientes do Mali: Toucouleur, por parte de mãe, e Mandeing, por parte do pai. Em 2001, Amâdou viajou de Dakar para o Rio de Janeiro, depois para o Recife, mas fixou residência ao longo de dez anos em Salvador, na Bahia. Lá, ele vendia mercadorias do Senegal: máscaras, esculturas, instrumentos, entre outros objetos. Em 2011, ele migrou para o Recife. Hoje, Amâdou é diretor do Centro Islâmico do Recife e referência para os senegaleses que migram para o Nordeste.
Maria Del Valle Calderón Moreno é indígena Warao, grupo étnico que originalmente habitava o delta do rio Orinoco, na Venezuela. Em 2017, Maria migrou para o Brasil com um grupo formado por 56 famílias Warao, que viajaram de ônibus até a cidade de Pacaraima, situada na fronteira entre a Venezuela e Brasil. Depois de permanecer por dois meses em um abrigo em Boa Vista, capital de Roraima, Maria morou em Manaus, Belém e, depois, Recife. Hoje, ela vive com sua família em João Pessoa, mas sempre que pode comercializa seus produtos da Feira do Bom Jesus, realizada no Bairro do Recife.
SERVIÇO:
Transição de Fase no Recife – Instalação de Lourival Cuquinha
De 24, 25, 26 e 27 de setembro, no Pátio de São Pedro, das 10h às 18h.
Dia 28 de setembro, na Feira Imperatriz das Artes, Rua da Imperatriz, das 13h às 20h.
Mais informações: @lourival_cuquinha @cuquinhatransicaodefase
Fotocapa: Alonso Laporte