“Por muito tempo se acreditou que os resultados obtidos em machos valiam para todos os sexos”, destaca a professora Daniela Baptista de Souza
Frequentemente negligenciadas em suas queixas e vistas como “fortes”, as mulheres têm a dor enquadrada como uma questão moral, como se suportá-la fosse uma obrigação. A ciência, porém, começa a contar essa história por outra perspectiva através de uma pesquisa realizada na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unesp, em Araraquara. Publicado este mês na revista científica European Journal of Pain, o estudo revelou que a dor crônica e o isolamento social são processados de forma distinta por camundongos machos e fêmeas. A pesquisa mostrou ainda que, entre elas, a expressão da ocitocina — hormônio associado ao bem-estar — diminui em situações de isolamento.
“Historicamente, o uso de fêmeas em pesquisas básicas de neurociência era bastante restrito. Prevalecia a ideia de que as oscilações hormonais poderiam atrapalhar a análise dos resultados”, explica a pesquisadora da FCF Daniela Baptista de Souza, que orientou o trabalho. “O problema é que, por causa disso, muitos fármacos e tratamentos para dor crônica, como no caso da fibromialgia, que acomete majoritariamente mulheres, acabam tendo menor eficácia no público feminino”, destaca.
De acordo com a doutoranda Ana Claudia Braga Dias, primeira autora do estudo, a inclusão das fêmeas no experimento não apenas trouxe novos dados científicos, como também ajudou a questionar crenças culturais sobre a suposta “tolerância” feminina à dor. “Os resultados sugerem que parte das diferenças observadas entre homens e mulheres pode ter origem social, e não apenas biológica”, destaca.
Como o estudo foi desenvolvido
Para entender o impacto do isolamento, os animais foram separados em quatro grupos: parte foi mantida em grupo e parte ficou isolada . Dentro de cada grupo, metade passou por uma cirurgia para induzir dor crônica (isto é, lesão no nervo) e a outra metade passou por um procedimento falso, sem lesão no nervo.
Essa divisão permitiu diferenciar os efeitos da dor daqueles desencadeados pelo isolamento. “Assim conseguimos ter certeza de que as mudanças de comportamento não estavam ligadas apenas ao estresse da cirurgia, mas à dor em si”, explica Ana Claudia.
A equipe avaliou duas dimensões da dor. Na parte sensorial, foram aplicados estímulos leves nas patas dos animais para medir a pressão necessária para provocar reação de desconforto. Para entender o lado emocional, o estudo analisou as expressões faciais, como estreitamento dos olhos e posição das orelhas, para calcular um “placar de dor”.
Os resultados confirmaram que os animais operados ficaram mais sensíveis à dor. Mas houve surpresas. “O isolamento social, mesmo sem lesão no nervo, aumentou a sensibilidade tanto em fêmeas quanto em machos”, diz Ana Claudia. “Quando olhamos para o componente emocional, no entanto, só as fêmeas isoladas mostraram expressões de dor mais intensas. Entre os machos, o isolamento não teve o mesmo impacto.”
Conduzidos pela doutoranda Ana Claudia Braga Dias, os testes avaliaram respostas à dor, ansiedade e depressão em machos e fêmeas | Imagem: Laboratório de Neuropsicologia
Outro achado foi que as fêmeas mantidas sozinhas demoraram mais para se recuperar do pequeno corte da cirurgia falsa, algo que normalmente desapareceria em poucos dias. “Isso sugere que a experiência de estar isolada interfere no jeito como elas processam o desconforto e prolonga o sofrimento”, comenta Daniela.
Uma das hipóteses para explicar o resultado vem da evolução. Segundo as pesquisadoras, as fêmeas desempenharam papel central nas interações sociais das espécies e foram selecionadas ao longo do tempo para perceber e comunicar melhor os sinais do ambiente. “Elas parecem ter desenvolvido maior habilidade para perceber e expressar estados emocionais, o que inclui também a dimensão afetiva da dor”, diz Daniela.
Outros achados
Além dos testes de dor, o grupo investigou os receptores de ocitocina, hormônio ligado ao bem-estar e às interações sociais, em regiões do cérebro relacionadas à regulação emocional. O resultado mostrou que, entre as fêmeas isoladas, houve uma redução na expressão desses receptores, algo que não foi observado nos machos.
“Acreditamos que essa diminuição na sinalização da ocitocina ajude a explicar por que as fêmeas são emocionalmente mais impactadas pelo isolamento”, diz Daniela. “Isso abre caminho para investigar se estratégias que aumentem a ação da ocitocina poderiam reduzir o impacto da solidão na dor”.
Para avaliar os impactos emocionais do isolamento, a equipe usou um teste chamado labirinto em cruz elevado, amplamente empregado em vários laboratórios do mundo em estudos de ansiedade, que demonstrou que o isolamento social aumenta a ansiedade em machos e fêmeas. Outro teste acompanhou a capacidade dos animais de construir ninhos com o material oferecido (algodão). “Quando o animal deixa de construir o ninho ou o faz de forma precária, é um sinal de que está apresentando sintomas semelhantes à apatia ou perda de interesse”, afirma a doutoranda da FCF.
Próximos passos
O estudo foi concebido durante a pandemia de Covid-19, quando o isolamento social chamou a atenção para seus efeitos na saúde mental e física. Agora, a professora Daniela participa de uma colaboração internacional com pesquisadores do Center for Advanced Pain Studies, da Universidade do Texas, em Dallas, para investigar esses mesmos mecanismos em tecido humano, doado por famílias de pacientes que tinham dor crônica.
“O objetivo é verificar se os mesmos padrões observados nos animais se repetem no cérebro humano e se a ocitocina pode ser um alvo terapêutico”, explica Daniela. Ensaios clínicos já testam a ocitocina inalatória para aliviar a dor, mas os mecanismos ainda não são totalmente compreendidos.
“Dor não é apenas um sintoma físico, é também um fenômeno social”, conclui Ana Claudia. “Olhar para esses dois aspectos pode ser a chave para melhorar a qualidade de vida de quem convive com dor crônica”.
A pesquisa também conta com a autoria dos pesquisadores: Silvia Jimena Cardenas Otero, Melissa Késsia Cavalcanti Oliveira, Lucas Canto de Souza, Carlos C. Crestani, Azair Canto de Souza e Ricardo Luiz Nunes de Souza.