Bebe da sagacidade do escritor Ariano Suassuna a inspiração para o título e a essência do novo EP lançado pela cantora pernambucana Letícia Bastos: “Meu Oxente”. A expressão faz eco a uma frase famosa do escritor paraibano radicado no Recife, proferida para demarcar o apreço pela regionalidade em contraponto à estrangeirice ostensiva da incorporação dos termos em inglês ao vocabulário nacional. “Não troco meu oxente pelo ok de ninguém”, sapecou o autor de Auto da Compadecida. O álbum da conterrânea faz coro à valorização do universal a partir do local com músicas sobre língua, trejeitos, virtudes, características, afetos e paisagens dessa identidade sob as nuances de um pop com alma nordestina.
O EP “Meu Oxente” dá as caras em todas as plataformas digitais com seis músicas assinadas pela cantora e compositora e uma releitura do clássico Feira de Mangaio (de Sivuca e Glorinha Gadelha) cujo clipe gravado na Feira de Caruaru bate meio milhão de visualizações no YouTube e coleciona outros milhares de acessos no Tik Tok. “É um manifesto de pertencimento. Um trabalho autoral que nasce da minha escrita, da minha voz, do meu sotaque e das histórias que carrego comigo desde sempre. Cada faixa revela uma camada da cultura nordestina: a força, a leveza, a saudade e o desejo. É olhar para dentro, com verdade, e cantar de onde venho, com orgulho”, resume a cantora.

O enaltecimento da diversidade artística e geográfica proposto pelo álbum se estende à defesa do empoderamento da voz feminina pelo direito de se expressar a partir de parâmetros próprios, únicos, sem adequação a medidas, regras, enquadramentos alheios. “Como mulher nordestina que carrega um sotaque forte e inegociável, quis levantar essa bandeira com orgulho e reafirmando que nossa forma de falar, sentir e existir não precisa ser suavizada para ser ouvida”, diz Letícia.
A faixa-título do álbum tem tons provocativos ao denunciar uma contradição (ou inveja) entre o menosprezo de conotações xenófobas e o desejo de pertencer ao espaço do outro. “Eu não troco meu oxente pelo ok de seu ninguém, falam tanto do falar da gente, mas querem ser daqui também”, dispara o refrão. A sonoridade aglutina elementos característicos da música feita no Nordeste – da marcação do triângulo aos acordes de sanfona e às batidas de maracatu, entrecortados por coro similar a toadas de lavadeiras.
“A canção nasce do desejo de afirmar a força do sotaque, da fala e das raízes, em contraposição à ideia de que é preciso suavizar ou ‘traduzir’ quem se é para ser ouvido”, resume. O clipe, disponibilizado no YouTube após o lançamento, tem locações em Olinda entre adereços da simbologia cultural pernambucana (La Ursa), no Grêmio Henrique Dias (pioneiro no ensino do frevo profissional), com caboclo de lança solitário de maracatu, na rua e em botecos, para fundir tradição e cotidiano, imaginário e realidade.
A música “Fulano Disse” faz da conversa informal das ruas um patrimônio para reverberar, com humor, descontração e simplicidade, o jeito de ser nordestino. É uma homenagem à fofoca, ao fuxico, ao disse me disse enquanto instrumento de conexão social e termômetro dos ânimos da cidade – sejam afetivos, urbanos, familiares, econômicos, políticos. E, claro, à capacidade de aumentar histórias narradas ao pé-do-ouvido. “Fulano disse, sicrano contou. A boca do povo, ninguém segurou”, diz um trecho. “A faixa retrata a forma como as pessoas contam, aumentam e reinventam histórias. O tom é leve, divertido e irônico: uma crônica musical sobre a ‘boca do povo’, elemento essencial da cultura popular”, pontua Letícia. O clipe ancora em um bar, cenário ideal para boatarias sobre a vida alheia.
A habilidade de transformar saudade em poesia e dor em arte – aptidão exercida de Gonzagão e Manuel Bandeira a Capiba e outros ícones da arte com essência nordestina – é referenciada em “Eu Chamo Você”, balada sentimental sobre lembranças de um amor perdido. A proposta da música é evidenciar o poder da ausência enquanto fonte inspiradora desaguada em música e poesia. A composição marcada pela suavidade faz um contraponto ao frenesi sonoro das outras peças do EP. “Na noite que vem, na falta que tem, na saudade de alguém, eu chamo você”, diz a letra, ponte para a nostalgia também inerente à vivência nordestina em relação a terra, antepassados, separações e desterros forçados.
Em “Nós Dois Perdidos”, a linguagem do amor é atualizada para as experimentações e liberdades contemporâneas, desarmadas e desamarradas, livres na forma, no conteúdo e na entrega ao hoje. A exploração do prazer se sobrepõe ao sentimentalismo para dar vazão ao agora. A música acolhe a pulsação das novas gerações, da fluidez dos envolvimentos, se conecta à era marcada pelo imediatismo das redes sociais e pela emancipação afetiva. O subtexto da composição dialoga com a possibilidade de evoluir a identidade a partir da incorporação do novo – sem descuidar da essência, da diferença, da singularidade e da tradição.
Os clipes das músicas do novo EP tem cronograma com lançamentos distribuídos nas semanas seguintes à disponibilização do álbum nas plataformas. Serão acessíveis ao público a cada sexta-feira, às 11h, no perfil da cantora no Instagram (@leticiabastos) e no canal do YouTube (youtube.com/leticiabastosoficial).
As duas outras composições autorais integrantes do EP foram lançadas recentemente e têm conquistado o público nas plataformas digitais. “Permita-se” carrega uma mensagem encorajadora sobre encarar desafios e persistir, tributo à perseverança de um povo resiliente e confiante em dias melhores. O clipe com 400 mil visualizações no YouTube tem locações em meio às pontes e à paisagem urbana do Recife. “A Moça de Boa Viagem” (100 mil visualizações) escala a praia famosa da capital como personagem para desenlace de uma afirmação feminina, com alusão à La Belle de Jour, de Alceu Valença, e à condição singular de uma mulher consciente da própria força, personalidade e voz. E do oxente.
TRAJETÓRIA
Letícia Bastos despontou para o cenário da música nacional com a participação no programa The Voice Brasil apresentado na Globo – ela figurou no time do sertanejo Michel Teló. A cantora lançou dois discos – Solteira de Vez (2017) e Let’s (2021) – e tem participado ativamente de ciclos da música pernambucana com shows e apresentações em períodos festivos, como carnaval e São João. Em 2025, a cantora empreendeu uma mudança na carreira e enveredou com mais incisividade pelo pop nordestino.
Assista ao clipe de “Meu Oxente”.
Foto: Dara Nunes
